EM CIMA DO MURO

Optei, entre tantos assuntos e temas interessantes e atuais, em dissertar sobre este, principalmente porque ele mexe comigo e, de certa forma, me afeta e à sociedade como um todo. Também penso que o escolhi porque, além de tudo, me incomoda, e o incômodo me atiça. É como um espinho na carne, sempre avisando que existe. Porém não é o incômodo com o que as pessoas pensam ou deixam de pensar a respeito, que me assedia, mas o significado e a implicação do próprio termo em si: “em cima do muro”. Preocupa-me a definição, a origem, o que quer realmente ou supostamente dizer. Confesso que pesquisei bastante, porém, pouco descobri sobre a tal origem e o porquê da sua aplicabilidade, utilizado que tem sido, principalmente, para designar aquele que ainda não se definiu, não tomou posição, não escolheu o lado.
Originalmente, o termo: “em cima do muro”, tanto quanto centro-direita-esquerda, tinha uma conotação espacial. Nos primeiros tempos dos governos representativos, mais especificamente ligados à Revolução Francesa (1789-1799), o congresso era ocupado da seguinte forma: no centro, posicionavam-se os membros representantes da alta burguesia, parte da pequena e média burguesia e alguns membros da aristocracia, ou seja, a composição era variada. Não eram radicais e procuravam uma conciliação. Ora apoiavam a esquerda, ora apoiavam a direita. Não se comprometiam. Podia-se dizer que se posicionavam “em cima do muro”, de acordo com a sua conveniência. Posteriormente foi adquirindo um perfil ideológico, como nos dias atuais. Assim, ao ouvirmos falar de direita, logo pensamos em conservadores; esquerda nos faz vislumbrar os revolucionários ou progressistas; centro denota aqueles indivíduos mais moderados ou conciliadores.
         Como disse Eustáquio Lagoeiro Castelo Branco: “É comum hoje, a utilização de determinados termos e expressões aos quais, às vezes, não damos atenção, mas que são importantes se queremos entender a nossa situação política. Pessoas há que dizem ‘detesto política’, e se esquecem ou não sabem que toda a sua vida, o seu dia-a-dia, giram ou estão intimamente ligados a essas mesmas circunstâncias políticas”.
         É engraçado como, em situações tais, nos habituamos, preconceituosamente, a classificar as pessoas que não estão do nosso lado como estando “em cima do muro”. O problema maior, geralmente, nem é a questão da indecisão, da indefinição na hora de optar, de escolher, mas a forma e a oportunidade da escolha. É de livre e espontânea vontade? Ou é a única opção? Às vezes, o mais relevante e considerável não é a nossa incapacidade de tomar a decisão, mas a impossibilidade de decidir, definir, escolher. Há, em muitas situações, ações coercitivas poderosas. Há inibições, pendências, dependências, interesses, constrangimentos, negociatas, até. Há uma infinidade de aspectos a se considerar quando se supõe ou se afirma que alguém está “em cima do muro”. Pode ser até que uma pessoa que pareça estar “em cima do muro” esteja, na verdade, em baixo. Já paramos para pensar que o muro também tem a parte de baixo? E que é exatamente nesse lado de baixo, da base, do alicerce, do fundamento, onde se encontram emparedados os excluídos de todos os outros lados? Já pensamos que é dali, de baixo, que geralmente surge um ou outro “fundamentalista” que vai se posicionar contra a maioria, geralmente representada pela direita ou pela esquerda? Sim. É dali, de onde o atrito faz ranger os alicerces contra os fundamentos básicos, que surgem os extremismos, os radicalismos, os revanchismos. E é, justa e geralmente, por não utilizarmos os mesmos pesos e as mesmas medidas, por não conhecermos o uso do nível e do prumo, do esquadro perfeito; é por nos esquecermos do código de Deus e dos homens que os sepultamos, Deus e homens, embaixo dos muros e deles nos esquecemos como se estorvos removidos tivessem sido. Esquecemo-nos de Deus, homens e muros. É por isso que elevamos alguns ao alto e a outros classificamos à direita ou à esquerda, conforme o nosso interesse ou ignorância.
         Reportando-nos ao período do regime segregacionista da África do Sul de há alguns anos, lembramo-nos que havia ali, um muro. Invisível, ele era. Mas, existia! Daquele muro não ninguém havia à direita, ninguém havia à esquerda. Havia apenas os de cima e os de baixo. E lá, a ninguém foi oferecida a oportunidade de escolher de qual lado ficar. Porém, a maioria foi selada nas entranhas e brechas dos alicerces mal fundados, como emblema do fundamento de uma pirâmide desigual.
         Da mesma forma, só que bem visível e concreto, é o novo “Muro do Apartheid”, atualmente em construção pelo governo de Israel. Este, além de representar uma ocupação ilegal de território, visa isolar e expulsar a população palestina de dentro de suas próprias terras, na Cisjordânia, numa demonstração descarada e declarada da política sionista-israelita. E, “em cima” desse muro, estão ocultos também os interesses americanos, ingleses e dos seus parceiros políticos e econômicos.
         Também foi para semelhante fim, proteger as terras conquistadas aos cananeus, que Jerusalém cercou-se de altos muros de pedra. Várias vezes derrubados, finalmente sobrou a parte do lado oeste, chamada hoje de “Muro das Lamentações”. E nós sabemos o porquê de os judeus chorarem e lamentarem até hoje? Seria a destruição do templo? A dispersão que espalhou Israel pelo mundo? Ou choram e lamentam por não haverem se apossado de uma vez por todas de todas as terras palestinas?
         Outro muro histórico foi o de Jericó, primeira cidade conquistada por Israel na peregrinação pela posse da terra prometida. Ali, sob um cerco que durou seis dias, a cidade esperou. No sétimo, ao toque de sete trombetas, o muro cedeu e desabou inteiro. Quem sabe não é a vez de os palestinos darem o troco?
         Em cada uma dessas situações, sempre houve quem estivesse à direita ou à esquerda e, principalmente, em cima e em baixo do muro. Até mesmo porque era no fundo das próprias valas abertas para o assentamento das gigantescas pedras da base de tantos muros erguidos, que muitas vezes eram sepultados, tanto os que sucumbiam sob o trabalho pesado da construção, quanto os que se dispunham a conquistá-los ou a defendê-lo,s nas incontáveis batalhas ao longo dos anos, dos séculos ou dos milênios a fio, de escravidão.
         Por tudo isso, tenho preferido manter definida minha posição crítica a respeito do tema, e expressá-la, quando posso, ainda que por isso, muitas vezes também tenha sido lançado para debaixo dos muros.
         E os demais, de que lado têm preferido se colocar?
         A quem poderíamos, do alto da nossa avaliação, em situações de escolha, supor ou apontar como estando “em cima do muro”?
         “Em cima do muro” nos postamos todos nós, sempre e de certa forma, quando preferimos nos acomodar no melindre de supostas ofensas do que reconhecermos razão a um adversário, quase sempre um colega ou amigo que está do outro lado.
         “Em cima do muro” estamos nós, quando atiçamos conflitos para ver quem atira primeiro ou quem tem pólvora para queimar e, sem compromisso ou comprometimento, nos debandamos ou nos bandeamos, de acordo com os nossos próprios interesses ou conforme o sobe-e-desce das pesquisas de intenção.
                   “Em cima do muro” estamos nós, toda vez que antecipamos a escolha de acordo com as vantagens que podemos auferir. E isso é estranho? É anormal? É extraordinário? Não! Isso é a regra, infelizmente. Seria utopia, considerado o caráter moral do homem de hoje, pensar que, numa disputa eleitoral, se buscasse a prevalência do interesse do todo em detrimento do interesse dos grupos; a prevalência dos interesses da nação, do estado, do município ou de qualquer instituição, em detrimento dos interesses das corporações ou dos indivíduos.
         “Em cima do muro” está sempre o nosso orgulho sutil que tende a cegar-nos quanto aos nossos próprios erros e exagerá-los nos outros.
         Por outro lado, engana a muitos o que, disfarçadamente, como lobo em redil de ovelhas, se posta “em cima do muro” tirando vantagens incalculáveis, arrebanhando inocentes que se deixam levar, ou conquistando a admiração dos ignorantes que se julgam espertos. Quantos, nos seus arroubos, encontram a vítima incauta e a conduz à sua vontade, para finalmente seduzi-la na escolha ou na definição do lado? Este, mais que os outros, ri-se e se regozija de estar “em cima do muro”. 
         E quem é que não está “em cima do muro”?       
         Não está “em cima do muro” o que é astuto, resoluto, e audaz ou o que faz do ideal a escolha e luta com afinco para que isso ainda o valha. Mas o idealismo não existe sem fé e a fé verdadeira “... não é tentar crer em algo a despeito das evidências. Fé é ousar fazer algo apesar das conseqüências”, já dizia Sherwood Eddy. Aquela é a fé contemplativa; esta é a fé dinâmica, que no conceito acima se torna sinônimo, não de posicionamento, mas de crença no ideal, de coragem, de esperança.
         Quantos muros os homens já levantaram? Muros de vergonha! Muros que se erguem entre pessoas, raças, padrões sociais; muros que perfilam como fortalezas entre religiões que ainda acreditam no mesmo Deus. Muros que separaram irmãos, patrícios, pó da mesma terra, sangue do mesmo sangue.  Muros invisíveis, barreiras inexpugnáveis construídas com os tijolos do orgulho, da inveja, do ódio, do egoísmo, da vaidade desmedida, que põem por terra os verdadeiros valores éticos e morais que deveriam reger a humanidade e, principalmente, depõem contra ela mesma. São os nossos preconceitos os verdadeiros arquitetos de todos esses muros. E somos nós mesmos o barro que une cada tijolo ao outro.
         E como encaramos a nós mesmos diante de tudo isso?
         Que atitudes temos tomado ou deveríamos tomar?
         Atitudes? Poderíamos nós, os que não conhecemos o significado de um ideal, perguntar: quem somos, para tomar atitude? Para que tomar atitude? Que atitude tomar?
         Atitude, senhoras e senhores, cidadãos! Não apenas posicionamentos. Atitudes, compromissos, participação efetiva e mais que efetiva, afetiva. Acima de tudo, não permitamos que qualquer situação proposta ou imposta nos separe uns dos outros ou venha quebrar o elo da comunhão, da unidade, da fraternidade. É forte o poder? É forte a direita? É forte a esquerda? Porque é forte este e fraco aquele? Por causa das atitudes! Somos fortes ou fracos dependendo das nossas atitudes. Mas, cuidado com as atitudes! Há atitudes fortes que dispersam, enquanto outras aglutinam; há atitudes fortes que desintegram, enquanto outras agregam. Então, como tomar a atitude certa? Tomemos as nossas atitudes de acordo com o lume que nos guia, ainda que o vejamos apenas como a nossa própria consciência moral, mas, após uma consulta direta a Deus. Tomemos as nossas atitudes racionalmente, pensadamente, após uma consulta direta a Deus. Tomemos as nossas atitudes intuitivamente, instintivamente, conforme manda o coração, mas só após uma consulta direta a Deus. Queremos melhor conselheiro? Quem de nós tem melhor conselheiro? Você tem? Então, tome a sua atitude de acordo com o seu guia, ainda que seja ele o seu próprio interesse!  Saibamos, porém, que com as nossas atitudes, com os nossos posicionamentos, também estamos construindo e desconstruindo. E, principalmente, busquemos saber que tipo de construção estamos erguendo ou derrubando entre nós mesmos. Não serão muros?
             
Dalto - 2002

Nenhum comentário: