CASA ABANDONADA

            Minha casa encontrava-se vazia, a longo tempo desabitada. Estava sem vida, sem alma, sem alegria. O pulsar descompassado que mal fazia mover o “pêndulo” do velho relógio de parede era sinal mais que evidente do desleixo, do abandono. De lado a lado, só paredes vazias, portas escancaradas, janelas batendo soltas, vidraças estilhaçadas... melancólica solidão ocupando os espaços vazios, os lugares das coisas, dos sentimentos. Em baixo, chão seco, piso batido, pó, frialdade. No alto, teias sob telhas quebradas, céu aberto. Frestas do abandono. Pela porta escancarada, não era difícil entrar. Entretanto, não era convidativo. Mas alguém se armou de ousadia, de coragem e entrou. Não se anunciou. Não bateu. Não pediu licença. Sem violência, sutilmente, carinhosamente invadiu o limiar, transpôs os umbrais, penetrou. Entrou como se entra pela noite, saindo do dia; naturalmente, como obedecendo a um convite ou desafiando um epitáfio mudo estampado na fachada triste. Entrou. Com seu jeito próprio, foi tomando conta e, zelosamente, cuidando, recuperando, reformando, restaurando, regenerando. Fechou as portas, cerrou as janelas, correu as cortinas, acendeu as luzes, vedou as frestas, tirou as teias, emendou as telhas, espanou o pó, poliu os vernizes, deu corda ao relógio, acelerou o pêndulo, alimentou meu cãozinho, varreu a solidão, aqueceu, deu vida e alma nova ao vazio que havia ali. Carinhosa, gentil, sossegadamente instalou-se, tomou conta, adonou-se do que não tinha dono. Colocou uma poltrona no canto, um tapete no centro da sala, um divã sob a janela, um quadro na parede, um som potente no quarto, um computador plugado na internet e uma mensagem de otimismo na tela. Decorou, arquitetou no seu tempo, a seu gosto, do seu jeito. Minha casa transformou-se de um dia para o outro, adquiriu vida nova, mudou de cara, de cor, de ares, de alento. A tristeza fez as malas e se foi embora, arrastando consigo, a passos preguiçosos, a solidão. Um novo morador ficou. Não um inquilino, mas um dono. Um sorriso, uma palavra, um “bom dia” toda manhã, gestos simples, atitudes singelas, expressões sinceras, confiáveis completaram a reforma e a transformação foi pluralmente radical. A minha casa ficou nova. Tão nova como nunca fora, desde a sua construção.
Quanto tempo vai durar? Não sei. Quem sabe? Pelo menos o bastante para fazer-me conhecer a felicidade larga tanto quanto outrora a estreita dor. Durará para dar-me uma sobrevida, uma esperança quem sabe curta, porém nova, um motivo para sorrir, cantar, agradecer e até retribuir? Durará o tempo suficiente para acostumar-me com o sofá no canto, com o divã sob a janela, com o quadro na parede, com o gongo pontual do relógio, com o meu cãozinho gordo abanando o rabo num sorriso agradecido? Durará o bastante para fazer-me esquecer que os sonhos também podem se tornar reais, como, por outro lado, interromperem-se ao acordar e que o retorno à realidade pode acontecer na queda vertiginosa de um pesadelo?
E agora? Tenho muito medo que de repente, a mensagem de otimismo desapareça da tela e que ela volte a se tornar vazia e negra. Que o “bom dia” caloroso que abria os portões da jornada fazendo-a quente e doce, esfrie, descontinue e os dias se esvaziem, esvaindo-se novamente em amargura, como dantes.
Tenho muito medo que a minha casa fique de novo vazia. Vazia e fria. Fria e amarga. Mais vazia, mais fria, mais amarga do que eu agora.
                                                                                             
Dalto – 22.07.2004

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